Após uma carreira consolidada de quase duas décadas em um grande escritório de advocacia, como foi a transição para o in-house? Quais foram os principais desafios e diferenças que encontrou ao assumir a direção jurídica do Grupo Soma?
A transição do escritório de advocacia para o ambiente corporativo foi um movimento muito natural para mim. Desde o início da minha carreira, sempre me vi como uma profissional focada na construção de soluções, e não apenas na identificação de riscos. No escritório, além da profundidade técnica do Direito, eu já atuava de forma estratégica, muito próxima aos clientes, entendendo não só as questões jurídicas, mas também os desafios do negócio. Isso me deu uma visão mais ampla e pragmática, que acabou sendo essencial para minha adaptação ao universo in-house.
No Jurídico de uma empresa, claro que o Direito continua sendo a espinha dorsal das decisões, mas a forma como ele é aplicado muda completamente. Não basta conhecer a legislação ou saber produzir um documento juridicamente irretocável—é preciso entender como traduzir tudo isso para a realidade da empresa, garantindo segurança jurídica sem travar as operações. O advogado corporativo precisa ter jogo de cintura, ser rápido e assertivo, saber priorizar e, acima de tudo, atuar como um facilitador. Sempre tive esse olhar no meu trabalho, então essa mudança para o ambiente corporativo aconteceu de forma bastante fluida.
O que mais me chamou a atenção no Grupo Soma, desde o início, foi o ritmo acelerado com que as decisões precisam ser tomadas. O mercado de varejo é extremamente dinâmico—uma boa oportunidade pode surgir e desaparecer muito rapidamente—e isso exige um Jurídico altamente ágil, que consiga dar respostas rápidas sem comprometer a solidez técnica. Aqui, o timing faz toda a diferença. Diferente de determinados setores, onde há mais tempo para amadurecer análises e estratégias, no varejo cada minuto conta. Para mim, essa necessidade de equilíbrio entre velocidade e robustez técnica é um dos grandes desafios e, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais fascinantes do meu trabalho. É um ambiente que exige ritmo, inteligência e estratégia o tempo todo—e isso me motiva diariamente.
O setor de moda e varejo enfrenta desafios jurídicos cada vez mais complexos, incluindo a regulação de marketplaces, compliance digital, privacidade de dados e questões trabalhistas. Com o jurídico assumindo um papel cada vez mais estratégico dentro das empresas, como você, na liderança do departamento jurídico do Grupo Soma, tem estruturado a área para antecipar e enfrentar esses desafios? De que forma a tecnologia e a inovação jurídica estão sendo utilizadas para tornar esse processo mais eficiente e alinhado com a estratégia do grupo?
Os desafios do jurídico corporativo vão muito além do setor de moda e varejo – refletem uma transformação que vem acontecendo no mercado como um todo. O papel do gestor jurídico mudou profundamente ao longo dos anos. Se antes a atuação era mais focada na mitigação de riscos, hoje espera-se que o Jurídico seja um parceiro estratégico, que contribua ativamente para o crescimento do negócio. Esse novo cenário exige um olhar mais amplo, que combine conhecimento técnico, visão de mercado, inovação e eficiência, sempre com foco em agregar valor para a empresa.
No nosso Jurídico do Grupo Soma, buscamos refletir essa nova realidade na maneira como estruturamos nossa atuação. Sempre acreditei que, mais do que processos e ferramentas, o grande diferencial está nas pessoas. Ter um time altamente capacitado, conectado com as transformações do mercado e atento à inovação em seus mais diversos aspectos é o que nos permite antecipar desafios e oferecer soluções cada vez mais estratégicas. Por isso, investimos constantemente no desenvolvimento e na capacitação da equipe, incentivando não apenas o aprimoramento técnico, mas também a capacidade de pensar sob referenciais além do tradicional e alcançar oportunidades onde costumeiramente antes só se identificavam riscos.
O nosso direcionamento para inovação também passa pela busca constante por mais eficiência e agilidade, garantindo que as soluções jurídicas estejam alinhadas ao ritmo do negócio. Utilizamos tecnologia para otimizar processos – da automação de atividades operacionais à análise de dados e indicadores para embasar decisões – mas sabemos que inovação não se limita à tecnologia. Muitas vezes, inovar significa simplesmente, por exemplo, repensar a forma como nos comunicamos internamente, trazendo uma linguagem mais fluida e acessível para nossos clientes internos e tornando o Jurídico mais próximo e colaborativo.
Nosso objetivo é que a nossa área seja também protagonista na construção de soluções e no desenvolvimento sustentável da nossa empresa. Para isso, está na nossa essência estimular um ambiente de aprendizado contínuo e inovação, onde o Jurídico não apenas responde aos desafios do presente, mas também se antecipa ao futuro, ajudando efetivamente no crescimento do negócio.
Como o Grupo Soma tem trabalhado para fortalecer a governança interna, e quais são as práticas de compliance mais desafiadoras no setor de moda e varejo?
Nos últimos anos, temos investido com consistência no fortalecimento da nossa governança interna e das nossas práticas de compliance. Esse movimento tem nos enchido de orgulho, especialmente por atuarmos em um setor historicamente marcado por informalidades.
Hoje, conseguimos manter relações com nossos fornecedores, prestadores de serviços e parceiros da cadeia produtiva e de vendas com alto nível de controle, segurança e transparência. Essa evolução foi construída aos poucos, com muito cuidado e atenção aos detalhes. Implantamos diretrizes e controles que equilibram dois pontos fundamentais para nós: garantir segurança às nossas operações e, ao mesmo tempo, manter a agilidade na tomada de decisões — algo essencial para acompanhar o ritmo acelerado do nosso mercado.
Consolidamos a nossa governança com base em um ideal que nos guia: o de construir uma “Moda Mais Ética”. Para nós, isso significa fazer moda com responsabilidade, agregando valor, gerando impacto positivo, atuando com transparência e buscando resultados sustentáveis para todos os envolvidos na nossa jornada.
Para colocar isso em prática, estruturamos quatro frentes principais de atuação, em uma colaboração próxima entre o time de sustentabilidade e o Jurídico socioambiental, sempre com base nos pilares ESG:
- Compliance e requisitos legais – Buscamos garantir que nossas operações estejam em conformidade com todas as obrigações legais e socioambientais. Nosso foco é prevenir desvios, reduzir riscos e evitar impactos financeiros e reputacionais, sempre com um olhar atento ao combate a práticas ilícitas como racismo, discriminação, trabalho infantil ou análogo à escravidão, fraudes, corrupção e crimes ambientais.
- Acesso a crédito e atração de investimentos – Trabalhamos para viabilizar acesso a capital qualificado, alinhando nossas práticas às exigências de linhas de crédito ESG e mostrando ao mercado a resiliência e a perenidade do nosso negócio, mesmo diante dos desafios climáticos e sociais.
- Geração de valor – Atuamos para fortalecer nossa reputação e imagem institucional, com foco em processos mais limpos, ecoeficiência e impacto positivo nas comunidades do entorno. Buscamos diferenciais competitivos e novas oportunidades de receita com responsabilidade socioambiental.
- Evolução da governança e visão de futuro – Estamos em constante aprimoramento das nossas estruturas de governança e controle. Nosso compromisso é gerir com ética, responsabilidade e visão estratégica, aderindo a certificações e índices relevantes, sempre atentos às expectativas dos nossos públicos de interesse e às tendências regulatórias.
Seguimos com o compromisso de evoluir, sempre. Acreditamos que uma moda mais ética se constrói todos os dias — com coerência entre discurso e prática, e com uma governança que, mais do que proteger, impulsiona.
O Grupo Soma tem um compromisso forte com ESG e sustentabilidade. Qual o papel do Jurídico na implementação dessas práticas e quais são os desafios específicos do setor de moda nesse aspecto?
A moda é uma indústria vibrante, criativa e em constante movimento. Mas também é um setor cheio de desafios: desde o impacto ambiental até a complexidade da cadeia produtiva, que muitas vezes é fragmentada e expõe riscos sociais relevantes. Some-se a isso um histórico de informalidade nas relações comerciais e uma forte exposição pública, que torna a transparência e a governança verdadeiros pilares de reputação e longevidade.
É nesse cenário que o nosso Jurídico atua com protagonismo. Nosso papel vai muito além de garantir conformidade: trabalhamos de forma estratégica para manter a nossa unidade de negócios na linha de frente das boas práticas do setor, sempre com um olhar voltado para inovação, sustentabilidade e geração de valor. Estruturamos nossa atuação em cinco frentes:
- Governança e Compliance – Somos muito atuantes na criação e revisão das políticas institucionais que guiam a nossa cultura, como a Política de Sustentabilidade e a de Diversidade, Equidade e Inclusão. Também conduzimos as diretrizes jurídicas do nosso Canal de Denúncias em relação à nossa unidade de negócios, uma ferramenta essencial para assegurar um ambiente íntegro e ético — tanto dentro de casa quanto ao longo de toda a cadeia de fornecimento.
- Gestão da Cadeia de Fornecimento: Junto ao time de Compliance, acompanhamos de perto os nossos fornecedores. Por meio de auditorias, checklists e cláusulas contratuais bem definidas, buscamos garantir relações comerciais justas, transparentes e em conformidade com normas trabalhistas e ambientais. Quando identificamos desvios, seguimos protocolos claros para agir com responsabilidade, reparando eventuais violações e, se necessário, acionando as autoridades competentes.
- Eficiência Operacional e Legal Operations: Sabemos que a moda exige agilidade. Por isso, adotamos uma abordagem de Legal Operations, que nos permite simplificar processos, utilizar dados de forma inteligente e acompanhar indicadores que reforçam a eficiência das nossas entregas.
- Capacitação Contínua e Inovação: Acreditamos que o nosso crescimento está diretamente ligado ao desenvolvimento das pessoas. Por exemplo, neste ano, com o programa Jurídico SOMA | Capacitação 2025, investimos em trilhas formativas que abrangem competências técnicas, socioemocionais e de liderança, preparando nossa equipe para os mais diversos desafios — inclusive em contextos de crise.
- Diversidade e Inclusão: Refletimos dentro do nosso time os valores que defendemos institucionalmente. Recrutamos com intencionalidade, estruturando processos seletivos que ampliem a diversidade e promovemos formações contínuas sobre temas como vieses inconscientes, equidade e letramento racial.
Mais do que reagir às mudanças da indústria, buscamos nos antecipar a elas. O nosso Jurídico se posiciona como um parceiro estratégico do negócio, combinando agilidade, solidez e impacto positivo — sempre com o propósito de construir uma moda mais ética, responsável e transformadora.
Como você vê o futuro do setor jurídico no Brasil, e que tendências acredita que irão impactar o setor de moda, varejo e, mais especificamente, as áreas de M&A, compliance e governança nos próximos anos?
Vejo que o setor jurídico no Brasil está passando por uma transformação inevitável e necessária. Já foi o tempo em que o papel do Jurídico corporativo era apenas mitigar riscos. Hoje em dia, cabe a nós contribuir efetivamente para que a empresa navegue em um cenário em constante mudança, trazendo soluções que sejam inovadoras, sustentáveis e seguras ao mesmo tempo.
Nos ambientes de moda e varejo, que são altamente dinâmicos e influenciados por tendências tecnológicas e comportamentais, essa adaptação é ainda mais crucial. Algumas mudanças já estão acontecendo e vão impactar diretamente as vertentes de M&A, compliance e governança nos próximos anos:
- ESG e sustentabilidade como parte do core business: Os consumidores e investidores estão cada vez mais atentos a como as empresas lidam com questões ambientais, sociais e de governança. Isso exige que o Jurídico olhe para além das questões tradicionais e inclua fatores socioambientais como critério fundamental em todas as suas análises e estratégias. É necessário que o Jurídico considere trazer no seu time profissionais dedicados a temas dessa natureza, como já temos na nossa área, o que nos garante uma assertividade decisiva em muitas questões de alta sensibilidade para o nosso negócio.
- Novas regras para um novo mercado: O varejo e a moda estão passando por mudanças profundas: novas formas de consumo, impacto da IA na personalização de produtos e experiências, integração entre o físico e o digital, novas formas de se moldar as relações trabalhistas e a crescente importância da proteção de dados e privacidade. O Jurídico precisa estar na linha de frente, entendendo essas mudanças e ajudando a empresa a se posicionar de forma segura e alinhada ao negócio. Participar dos projetos desde a sua concepção, como área estratégica, e não apenas como backoffice, é cada vez mais necessário para que o Jurídico atinja esse referencial.
- Um jurídico protagonista do gerenciamento de crises corporativas: Mais do que apontar problemas, o Jurídico precisa assumir o papel de parceiro ativo no gerenciamento das crises a que o negócio de varejo está exposto, seja internamente, em situações envolvendo seus colaboradores, seja externamente, com seus investidores, consumidores ou órgãos de fiscalização. O varejo é muito sensível a questões reputacionais e o Jurídico deve atuar com uma sensibilidade que o permita estar sempre atento a situações que possam representar crises a serem contornadas com a rapidez necessárias para se reduzir possíveis impactos para o negócio.
- Tecnologia e digitalização como aliadas, não ameaças: A digitalização dos negócios e o uso de inteligência artificial são uma realidade que não pode ser ignorada. Ferramentas de automação, legal analytics e IA generativa já estão transformando a forma como trabalhamos, otimizando processos e dando espaço para que o Jurídico se concentre no que realmente importa: estratégia e tomada de decisão. O Jurídico que resistir a essas mudanças pode acabar se tornando um gargalo, enquanto aquele que souber aproveitar a tecnologia será um diferencial competitivo para a empresa.
No fim das contas, o novo não pode ser evitado. O Jurídico que insistir em resistir às mudanças que já se desenham perderá espaço e não conseguirá atingir a sua máxima potência para atender ao que as empresas precisam entregar para se manterem competitivas no mercado. Já aquele que souber se adaptar, entender o contexto e propor soluções criativas e alinhadas ao futuro ganhará cada vez mais espaço, tornando-se protagonista do seu caminho como área estratégica da empresa.