Disputas

'Em 2024, 2.273 empresas ou grupos empresariais pediram recuperação judicial, o maior número desde a criação do instituto'

A abertura do capítulo de abertura do ranking de Bankruptcy do Brazil's Best Counsel tem autoria dos sócios do Bermudes Advogados, Marcelo Lamego, Eric Cerante e Ricardo Loretti

Decorridos vinte anos desde a sua edição, a Lei n. 11.101, de 20.02.05, registra significativos avanços na sua utilização, graças, em grande medida, ao esforço dos diferentes operadores do Direito em adaptá-la às necessidades do mercado brasileiro (juízes, advogados, pareceristas, membros do Ministério Público, procuradores das fazendas públicas, entre outros) e às recentes alterações legislativas introduzidas após a sua vigência[1].

O instituo da recuperação judicial integrou-se tão intensa e rapidamente ao ordenamento jurídico brasileiro que parece impensável hoje imaginá-lo sem essa imprescindível ferramenta para a solução da empresarial.

A lei, pode-se afirmar sem medo de errar, é atualmente mais importante do que nunca. Em 2024, 2.273 empresas ou grupos empresariais pediram recuperação judicial, o maior número desde a criação do instituto. Superou-se largamente a alta histórica, ocorrida em 2016 com 1.863 pedidos de recuperação judicial. O número de pedidos de recuperação judicial apresentados em 2024 representa um aumento de 61,8% em relação a 2023.

O número de falências foi igualmente expressivo: em 2024, 949 empresas ou grupos empresariais apresentaram pedido de autofalência.

Em 2025, por ocasião do aniversário de vinte anos da Lei n. 11.101, o STJ republicou e atualizou o chamado “Jurisprudência em Teses”, documento oficial com sua jurisprudência sobre o tema da insolvência (tanto para recuperação judicial quanto para o processo falimentar).

Importante registrar algumas evoluções recentes da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – a quem cabe a palavra final sobre a interpretação da legislação federal no Brasil – que contribuíram para o desenvolvimento da recuperação judicial no Brasil.

No julgamento do REsp 2.123.959/GO, a Terceira Turma do STJ revisitou a questão da natureza do crédito do fiador que paga a dívida de empresa em recuperação judicial. O crédito do fiador está ou não sujeito à recuperação judicial?

Até então, o entendimento predominante na Corte era de que o crédito não se sujeitava à recuperação judicial, visto que o seu surgimento se dava com o exercício da fiança e, portanto, era posterior à apresentação do pedido de recuperação judicial, data que, nos termos do art. 47 da Lei n. 11.101, marca o divisor de águas entre os créditos sujeitos ou não ao regime da recuperação. Por essa lógica, o fiador teria o direito de exercer o direito de regresso contra o devedor principal de forma autônoma, fora da recuperação judicial.

A Terceira Turma do STJ, contudo, reviu esta posição, por entender que o fiador, ao pagar a dívida em nome do devedor principal, sub-roga-se na posição original do credor, isto é, passa a ser parte de uma relação de crédito que já existia antes da apresentação do pedido de recuperação judicial. Portanto, o crédito do fiador estaria sujeito à recuperação judicial.

O precedente acima mencionado representa uma alteração significativa do entendimento do STJ sobre o tema, mas ainda não constitui uma consolidação com força vinculante da sua jurisprudência. A comunidade jurídica acompanha de perto a consolidação da posição do STJ neste relevante tema.

Já no julgamento do Recurso Especial 2.163.463/SP, o STJ se manifestou sobre a relação entre a arbitragem e a recuperação judicial. Naquele caso, discutia-se a validade de sentença arbitral que declarou a compensação de dívidas de uma empresa em recuperação judicial.

O Tribunal de Justiça de São Paulo havia concluído pela validade da sentença arbitral, por entender que a sentença arbitral apenas reconheceu a existência de compensação havida antes da apresentação do pedido de recuperação judicial.

O STJ, contudo, entendeu de maneira contrária: afirmou que a competência para analisar a compensação de créditos de empresa em recuperação judicial é exclusivamente do juízo recuperacional, de modo que decisões de tribunal arbitral sobre esta matéria devem ser consideradas nulas por inarbitrabilidade objetiva. Em outras palavras, entendeu o STJ que falta ao tribunal arbitral competência para declarar a compensação de créditos de empresas em recuperação judicial.

Neste julgamento, o STJ reafirmou a possibilidade de empresas em recuperação judicial utilizarem a arbitragem como método de solução de controvérsias (arbitrabilidade subjetiva), mas estabeleceu limites à competência do tribunal arbitral, sobretudo em matérias de observância obrigatória, como a sujeição de determinado crédito aos efeitos da recuperação judicial (arbitrabilidade objetiva). A decisão nem de longe esgota o tema, mas consiste no posicionamento mais recente e detalhado do STJ sobre as possibilidades e os limites para a conciliação entre a arbitragem e a recuperação judicial no Brasil.

O ano de 2024 trouxe um expressivo aumento nos pedidos de recuperação judicial do agronegócio. Foram 1.272 pedidos de recuperação judicial neste setor, o que representa 55,9% do total registrado no ano passado. Em 2023 o setor teve 534 pedidos de recuperação judicial, o que significa um impressionante aumento de 138% em um ano.

Os fatores econômicos para isso são diversos. Os especialistas destacam o aumento dos juros, inflação dos insumos agrícolas, instabilidade cambial e questões climáticas. Cumpre destacar o papel do direito da insolvência neste cenário.

Em 2020, quando a Lei 11.101 foi reformada, um dos assuntos de destaque foi a recuperação judicial do produtor rural. Naquela oportunidade, alterou-se a lei para que o agricultor pessoa física pudesse pedir recuperação judicial, desde que cumpridos os requisitos legais relativos ao registro dessa atividade.

Em 2024, 566 produtores rurais pediram recuperação judicial. O crescimento histórico é impressionante: em 2021, primeiro ano em que isso foi possível, 13 pedidos foram protocolados. Em 2022, houve um tímido crescimento para 20 pedidos. Em 2023, chegou-se a 127 pedidos, número que viria a crescer mais de 400% em 2024.

Percebe-se que a alteração da Lei 11.101 permitiu a expansão da aplicação do instituto da recuperação judicial para o agronegócio, de modo a aumentar a sua importância como uma ferramenta jurídica para a solução da crise empresarial.

Registre-se, por fim, que o ano de 2024 também foi marcado por discussões de reforma legislativa, em razão da apresentação do Projeto de Lei nº 3 de 2024, cujo objetivo é alterar a Lei 11.101 para aprimorar o regime da falência.

O PL 3 de 2024 parte da premissa de que, no Brasil, “o processo de falência é moroso e pouco efetivo”, procurando “conferir maior celeridade à tomada de decisões no âmbito dos processos de falência, ampliar o acesso a informações relativas ao processo e modernizar a sua governança”.

Para isso, o projeto traz a obrigatoriedade do “plano de falência”, documento a ser elaborado pelo administrador judicial e aprovado pelos credores, trazendo diretrizes para avaliação e venda dos ativos da massa falida, bem como para pagamento dos credores, inclusive mediante deságio e alongamento de prazo. Além disso, projeto prevê a criação do “gestor fiduciário”, que pode, por decisão dos credores em assembleia, substituir o administrador judicial e desempenhar suas funções.

Além das inovações que propõe o PL 3 de 2024 procura consolidar e alterar práticas que já existem, a exemplo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica na falência, que, passaria a ser centralizado no juízo falimentar.

Decorridos 20 anos da sua edição, percebe-se que a Lei 11.101 segue cada vez mais necessária e utilizada pelos aplicadores do Direito. Pedidos de recuperação judicial e falência nunca foram tão frequentes, o que reflete a confiança que o instituto já conquistou na sociedade. As mudanças legislativas e jurisprudenciais observadas ao longo desses últimos vinte anos certamente colaboraram para a consolidação dos institutos no ordenamento jurídico brasileiro.

[1] Destaca-se reforma introduzida pela Lei n. 14.112, de 24.12.2020 que alterou de forma relevante e ampla a recuperação judicial e a falência.