Disputas

Soluções inovadoras para os litígios de consumo em larga escala

O artigo, que é o capítulo de abertura do ranking de Large-Scale Consumer Litigation do Brazil's Best Counsel, tem autoria de Suellen Poncell, sócia do Queiroz Cavalcanti, e de Renato Dowsley de Morais, advogado do escritório

O aumento exponencial do volume de ações no Judiciário brasileiro tem gerado preocupação em relação à eficácia e à celeridade da prestação jurisdicional.

Isso porque, o crescimento contínuo da judicialização compromete a capacidade dos tribunais de focar em demandas que realmente exigiriam sua intervenção, prejudicando o cidadão que busca o Judiciário para solucionar questões legítimas. Nesse cenário, é que se insere o fenômeno da litigância predatória.

Caracterizado pelo ajuizamento massivo e padronizado de ações com fundamentos frágeis ou fraudulentos, esse tipo de prática é frequentemente conduzido por grupos de advogados que incentivam consumidores a ajuizarem ações com base na promessa de ganhos financeiros rápidos, muitas vezes sem a devida fundamentação, a ciência plena dos próprios clientes ou a tentativa prévia de resolução extrajudicial do impasse.

A preocupação com a litigância predatória levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a editar novas normativas para coibir práticas abusivas dessa natureza. A mais recente deles, Recomendação nº 159/2024, aprovada sob Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso, trouxe diretrizes claras para o enfrentamento do problema.

A recomendação conceitua como abusivas as condutas ou demandas sem lastro probatório adequado, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras.

Na essência, a Recomendação pretende assegurar que a garantia de acesso à justiça possa ser exercida de maneira efetiva, mediante a otimização dos recursos disponíveis para lidar com demandas de massa, inibir os litigantes abusivos e, por conseguinte, privilegiar aqueles que de fato buscam o Judiciário na tentativa de assegurar interesses legítimos.

Além disso, a recente orientação prevê a adoção de medidas judiciais específicas para casos concretos de litigância abusiva, incluindo a responsabilização de advogados que atuam de forma reiterada e desleal – no que dialoga com a anterior Recomendação nº 127/2022, que já orientava os tribunais a adotarem cautelas para coibir a judicialização predatória capaz de restringir o direito de defesa e limitar a liberdade de expressão.

Diante do crescente volume de ações, a identificação e o monitoramento de práticas de litigância predatória tornaram-se prioridades para empresas, escritórios de advocacia e Poder Judiciário.

Nesse contexto, o uso de tecnologia tem se mostrado essencial para detectar padrões irregulares, identificar advogados que adotam práticas abusivas e fornecer subsídios para a adoção de medidas preventivas e corretivas. Com a aplicação de algoritmos avançados, é possível mapear o perfil dos litigantes, verificar a recorrência de determinadas teses jurídicas e rastrear o volume de ações ajuizadas em curto período.

Assim é que, o uso intensivo de ferramentas tecnológicas permite uma atuação mais eficiente e estratégica, reduzindo o impacto financeiro e operacional para as empresas e escritórios de advocacia, além de auxiliar os tribunais na triagem de demandas.

Em 2024, em um único case, por exemplo, nosso escritório detectou, para um cliente do setor bancário, a prática de advocacia predatória nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, por meio da nossa ferramenta QCA ‘Performa Analytics’, que revelou mais de 1.300 ações judiciais movidas pelo mesmo advogado. Em resposta, implementamos um plano estratégico de atuação e, até o momento, alcançamos resultados expressivos, com uma taxa de improcedência dos pedidos da parte contrária, superior a 94%.

Nesse cenário, a ferramenta desempenhou um papel fundamental em diversas etapas do processo, incluindo: (i) a identificação do advogado que ajuizou um volume elevado de processos idênticos ou semelhantes em um curto intervalo de tempo; (ii) a avaliação de padrões em demandas específicas para estimar a probabilidade de sucesso, que permitiu a definição de estratégias jurídicas mais precisas e eficazes; (iii) a utilização de robôs que executaram atividades como a triagem inicial dos processos, o preenchimento de formulários e o acompanhamento automatizado de movimentações processuais; e (iv) a identificação de inconsistências documentais ou processuais que sugerissem a existência de fraude ou manipulação de informações, permitindo uma medida judicial, ágil e fundamentada.

A adoção dessas tecnologias não apenas aumentou a eficiência na gestão dos processos, como também fortaleceu a nossa capacidade de identificar e neutralizar práticas abusivas, protegendo os interesses do cliente e garantindo maior segurança jurídica. Além disso, o uso estratégico de tecnologia nos permitiu atuar de forma proativa, reduzindo o impacto financeiro e operacional decorrente da litigância predatória. Seguimos aprimorando nossas ferramentas e metodologias para garantir uma atuação jurídica inovadora e eficiente, sempre em defesa dos direitos e da integridade de nossos clientes.

Ferramentas tecnológicas, no entanto, não são as únicas soluções disponíveis para tratamento do fenômeno da litigância de massa.

Outro instrumento utilizado pelos tribunais para enfrentar o excesso de litigância, este de natureza processual, é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) – que busca uniformizar decisões em casos que envolvem questões jurídicas idênticas e se repetem em grande escala, assim como os Incidente de Assunção de Competência (IAC), com escopo distinto. A partir do IRDR e IAC, o tribunal fixa uma tese jurídica que será aplicada a todos os casos semelhantes, evitando decisões conflitantes e proporcionando maior segurança jurídica.

Essas ferramentas processuais são fundamentais para conter a litigância, pois viabilizam decisões vinculantes que reduzem a proliferação de ações idênticas e desestimula práticas abusivas por parte de litigantes.

Nesse contexto é que se insere a decisão tomada em 13/03 pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Tema 1198. Proferida no âmbito dos recursos repetitivos, a decisão estabelece que, “constatados indícios de litigância predatória, o juiz pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, a emenda da petição inicial, a fim de demonstrar o interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova”.

A decisão foi proferida no âmbito do Recurso Especial nº 2021665, originado do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), que discutia a possibilidade de o magistrado exigir documentos complementares, como procuração atualizada, declaração de pobreza e documentação de contratos e extratos bancários, em casos com denúncias de abusos processuais. A tese firmada, além de estar amparada em dispositivos processuais e no poder geral de cautela, também alinha as exigências documentais feitas pelos magistrados com as orientações do CNJ na Recomendação 159/2024.

Diante desse cenário desafiador, é imprescindível que empresas, advogados e o Poder Judiciário invistam em tecnologias avançadas para monitoramento e identificação precoce de práticas predatórias. A tecnologia e o uso estratégico de instrumentos processuais representam um importante avanço no combate à litigância predatória. Ao unirem esforços para identificar e conter essas práticas, todos os envolvidos promovem um sistema de Justiça mais ágil, eficiente e acessível, garantindo que as demandas legítimas recebam a atenção necessária e que os recursos públicos sejam utilizados de forma racional e justa.