O Arquipélago do Marajó, no norte do Pará, é uma síntese viva das complexidades fundiárias e jurídicas da Amazônia brasileira. Entre rios e ilhas, a história da região mistura títulos coloniais, posses tradicionais e a presença do poder público. Nesse contexto, a regularização fundiária ultrapassa a dimensão patrimonial: ela representa um desafio de soberania, legalidade e justiça social.
Sob a ótica jurídico-constitucional e agrária, o jurista Benedito Mutran Neto coordenador do Núcleo Agrário da XERFAN ADVOCACIA S/S analisou como o emaranhado dominial do Marajó reflete as contradições da própria política fundiária nacional. Para eles, compreender o artigo 20, inciso IV, da Constituição Federal — especialmente após a Emenda Constitucional nº 46/2005 — é essencial para entender a quem pertencem as terras da região.
Ilhas com sede de município: domínio estadual e particular
A Emenda Constitucional nº 46/2005 trouxe uma mudança significativa: as ilhas costeiras com sede de município, como o Marajó, deixaram de integrar automaticamente o patrimônio da União.
Com isso, a titularidade das terras não vinculadas a serviços públicos ou à proteção ambiental passou a caber aos Estados e particulares, reforçando o pacto federativo e a segurança jurídica. Apesar disso, a aplicação prática dessa norma ainda encontra resistência administrativa — especialmente por parte da Secretaria do Patrimônio da União (SPU).
O impasse do “terreno de várzea”
Um dos principais focos de controvérsia está na figura do chamado “terreno de várzea”, adotada pela SPU para reivindicar áreas no arquipélago. Segundo os autores, o conceito não possui amparo legal e contraria diretamente o Decreto-Lei nº 9.760/1946, que define de forma taxativa os bens da União.
A criação de categorias dominiais sem respaldo normativo pode ser interpretada como potencialmente conflitante com os princípios da legalidade, da reserva de lei e da
separação dos poderes, sendo mencionados, ainda, possíveis reflexos sobre a segurança jurídica e sobre políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à regularização de posses históricas.
O peso da história e o ônus da prova
A ocupação fundiária do Marajó remonta às Cartas de Sesmaria e aos antigos títulos formais de transferência de domínio. Essas cadeias documentais, ainda hoje, possuem valor jurídico e histórico.
Para os autores, o registro imobiliário tem caráter declaratório, ou seja, reconhece uma situação jurídica preexistente. Assim, conforme o artigo 373, II, do Código de Processo Civil, cabe ao poder público — e não ao particular — provar de forma inequívoca o domínio federal que alega.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reforça esse entendimento, afastando presunções automáticas em favor do Estado e privilegiando a estabilidade das relações dominiais, fundamento da segurança jurídica no campo.
A função social da propriedade
Mais do que um direito individual, a propriedade na Amazônia deve cumprir uma função social, conforme o artigo 186 da Constituição Federal. Essa função envolve produtividade, preservação ambiental e respeito às relações de trabalho.
Para Mutran Neto, o cumprimento desses requisitos legitima o domínio e equilibra os interesses público e privado. A terra que cumpre sua função social é protegida constitucionalmente — um elemento essencial para a justiça agrária e a inclusão social.
Georreferenciamento e sustentabilidade
A tecnologia tem se tornado aliada crucial na gestão fundiária. O georreferenciamento e a certificação fundiária realizados pelo INCRA garantem precisão nos limites das propriedades, eliminam sobreposições e fortalecem a integridade dos registros públicos.
Esses instrumentos, previstos na Lei nº 10.267/2001 e no Decreto nº 4.449/2002, representam avanços significativos rumo a uma política agrária moderna, transparente e eficiente.
Na dimensão ambiental, o autor destaca que a criação de Áreas de Proteção Ambiental (APAs) impõe apenas restrições administrativas de uso — não altera a titularidade privada preexistente. O princípio do tempus regit actum impede que normas ambientais retroajam para suprimir direitos legitimamente constituídos.
Justiça territorial e soberania nacional
A regularização fundiária no Marajó, concluiu o autor, é mais do que uma questão de posse ou de propriedade: é um instrumento de justiça territorial e afirmação do Estado de Direito na Amazônia. A pacificação fundiária depende da conjugação entre rigor jurídico, sensibilidade social e responsabilidade política. É preciso harmonizar a propriedade, a função social e a sustentabilidade para consolidar a soberania nacional.
No Marajó, mais do que discutir quem detém o título da terra, o desafio é definir como o território pode servir à coletividade, à proteção ambiental e à dignidade humana. Em última análise, trata-se de decidir o futuro da Amazônia e o alcance real da justiça agrária no Brasil.
 
								 
				


 
																		 
																		