Disputas

O julgamento que pode redefinir o mercado de trabalho e o futuro das startups no Brasil

Decisão aguardada pelo Supremo deve definir se há vínculo empregatício entre motoristas de aplicativo e plataformas digitais — e o resultado poderá redesenhar o mapa das relações de trabalho na era da tecnologia. O artigo tem autoria da advogada Gabriela Mayumi

O Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para decidir um dos temas mais esperados do Direito do Trabalho contemporâneo: o Tema 1.291 da Repercussão Geral, que discute se há — ou não — vínculo empregatício entre motoristas de aplicativo e as plataformas digitais.

A decisão, de repercussão vinculante, ultrapassa o universo da economia dos apps. Ela poderá redefinir a forma como startups, empresas de tecnologia e prestadores autônomos se relacionam em todo o país, afetando contratos firmados sob o modelo PJ (pessoa jurídica) — prática cada vez mais comum em setores dinâmicos e digitais.

O que está em jogo

O cerne da discussão é determinar se a chamada pejotização mascara relações típicas de emprego, violando os critérios estabelecidos pelo artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): pessoalidade, subordinação, onerosidade e habitualidade.

Caso o STF reconheça a presença desses elementos, empresas que contratam prestadores como PJs poderão ser obrigadas a formalizar vínculos empregatícios e recolher encargos retroativos, como FGTS, férias e 13º salário.

Por outro lado, se o Supremo validar a contratação de pessoas jurídicas sempre que houver autonomia real, o entendimento consolidará o modelo de trabalho flexível e empreendedor que sustenta boa parte da economia digital.

O impacto, portanto, será jurídico, econômico e social — podendo influenciar desde o custo de operação de startups até a arrecadação previdenciária do Estado.

Possíveis cenários e efeitos práticos

Caso o STF reconheça o vínculo de emprego, os efeitos serão profundos. Empresas que contratam via PJ precisarão adaptar estruturas e modelos de negócios, recolher encargos e, em alguns casos, reclassificar retroativamente relações de trabalho.

Além do peso financeiro, haverá reflexos tributários e reorganização operacional — especialmente em setores de alta rotatividade e margens estreitas.

Se, ao contrário, o STF entender que a pejotização é legítima quando o prestador exerce atividade empresarial com liberdade e risco próprios, o setor produtivo ganhará previsibilidade. Mas isso não eliminará a responsabilidade: a primazia da realidade continuará a orientar as decisões da Justiça do Trabalho.

Ou seja: mesmo com contrato de PJ, se o profissional cumprir jornada, receber ordens e integrar a estrutura da empresa, o vínculo poderá ser reconhecido judicialmente.

Startups e tecnologia: atenção redobrada

O setor de tecnologia é o que mais deve acompanhar de perto o julgamento. Startups e empresas digitais frequentemente contratam desenvolvedores, designers e analistas como pessoas jurídicas, mas em condições que se aproximam de vínculos tradicionais.

Na pejotização clássica, há uma empresa individual prestando serviços contínuos, mas sob comando direto.

Já nas plataformas digitais, o modelo muda: o prestador tem autonomia aparente, escolhendo quando e como trabalhar. No entanto, algoritmos, metas e ranqueamentos podem gerar uma forma de subordinação tecnológica, na qual o controle é exercido de forma indireta.

Esse é o ponto sensível que o STF precisará endereçar. O julgamento não afetará apenas aplicativos de transporte, mas também o ecossistema inteiro de serviços digitais — do marketing à programação, da logística à economia criativa.

Entre a segurança jurídica e a judicialização

O julgamento pode trazer segurança jurídica, uniformizando entendimentos e reduzindo a incerteza que hoje marca as decisões da Justiça do Trabalho.

Mas há um risco inverso: uma decisão genérica, sem parâmetros claros, pode abrir brechas para uma nova onda de ações judiciais, com milhares de prestadores buscando reconhecimento de vínculo com base na tese do Supremo.

A expectativa é que a Corte alcance um ponto de equilíbrio — validando contratações empresariais legítimas, mas fixando limites objetivos para evitar que a pejotização seja usada como subterfúgio.

Critérios claros sobre autonomia, dependência econômica e subordinação indireta seriam suficientes para orientar tanto empresas quanto profissionais.

Boas práticas para reduzir riscos trabalhistas

Enquanto o STF não decide, especialistas recomendam que as empresas reforcem suas políticas de compliance trabalhista.

Algumas medidas essenciais incluem:

  • Revisar contratos de prestação de serviços, assegurando que o texto reflete a prática real.
  • Evitar subordinação direta — o PJ não deve receber ordens de horário, exclusividade ou metas de equipe.
  • Garantir autonomia formal e material, permitindo que o profissional atue para outros clientes e arque com seus próprios custos.
  • Prevenir aparência de vínculo, evitando que o prestador use crachás, participe de controles de ponto ou rotinas internas.
  • Treinar gestores e líderes, para que compreendam as diferenças entre trabalho autônomo e relação de emprego.
  • Manter documentação e auditorias periódicas, registrando as condições reais da prestação de serviços.

Em resumo: quanto maior a autonomia, menor o risco jurídico. Relações disfarçadas sob o rótulo de PJ devem ser corrigidas antes que a decisão do Supremo gere efeitos retroativos.

Um novo pacto entre inovação e proteção

A decisão sobre o Tema 1.291 será um marco na história das relações de trabalho no Brasil. Num cenário em que a tecnologia redefine o que significa “trabalhar”, o desafio do STF é equilibrar dois valores fundamentais: a proteção do trabalhador e a liberdade econômica.

Mais do que resolver um caso, o Supremo será chamado a modernizar a interpretação da legislação trabalhista diante da revolução digital.

Se o Tribunal conseguir traçar um caminho que assegure direitos sem inviabilizar modelos inovadores, o país poderá dar um passo decisivo para um novo pacto — mais claro, mais justo e mais condizente com o século XXI.