Os números de afastamentos do trabalho por transtornos mentais, como episódios depressivos, ansiedade, burnout e estresse grave, aumentaram consideravelmente desde 2014. Naquele ano, quase 203 mil brasileiros foram afastados. Em 2024, esse número chegou a 440 mil. Quando comparado a 2023, o crescimento foi de quase 67%, segundo dados do Ministério da Previdência Social.
“É estarrecedora a notícia que o Brasil bateu recorde de afastamentos do trabalho por ansiedade, depressão e outros transtornos mentais em 2024. Vivemos em um país com carga horária de trabalho alta, com baixíssimo investimento das empresas no bem-estar dos funcionários e com direitos trabalhistas estabelecidos em Lei sendo desrespeitados cotidianamente em toda e qualquer área da nossa economia”, publicou a deputada Erika Hilton em seu perfil do LinkedIn.
No último ano, os principais motivos de afastamento foram transtornos de ansiedade (141.414), episódios depressivos (113.604), depressão recorrente (52.627) e reações a estresse grave e transtornos de adaptação (20.873).
Para Fernando Akio, diretor médico da P&G, o aumento dos casos é resultado de múltiplos fatores, envolvendo questões estruturais e mudanças recentes na gestão previdenciária. Ele destaca medidas como o AtestMed, que permitiu afastamentos de até 120 dias apenas com apresentação de atestado médico, sem perícia inicial, além de uma maior conscientização social, que reduziu o estigma e aumentou a procura por diagnóstico. Outro ponto levantado pelo especialista é a crise de saúde mental agravada no período pós-pandemia.
“A pandemia de COVID-19 deixou sequelas como luto coletivo, isolamento social prolongado e insegurança financeira, elevando diagnósticos de ansiedade (+341% em 10 anos) e depressão (+91%). Mudanças tecnológicas aceleradas e precarização laboral intensificaram pressões psicológicas, especialmente entre mulheres (64% dos afastados) “, observou Akio.
Pandemia e efeitos a longo prazo
“O confinamento intensificou quadros de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, especialmente entre mulheres (64% dos casos) e jovens adultos. Estudos mostram que 80% dos pacientes pós-COVID relataram dificuldades cognitivas, como perda de memória e concentração. A interrupção de atividades coletivas e o medo constante geraram sentimentos de solidão e desesperança. Universitários, por exemplo, abandonaram projetos profissionais devido à perda de perspectivas”, comentou o diretor médico.
A transição para o mundo pós-pandemia não afetou apenas os trabalhadores diretamente; impactos de médio e longo prazo ainda são observados em diversas áreas da sociedade brasileira. De 2020 a 2024, o preço dos alimentos aumentou 55%, segundo levantamento de André Braz, coordenador dos Índices de Preços do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre), o que amplia a ansiedade financeira e a precarização do trabalho.
“A Saúde mental é a “quarta onda” da COVID. Os 472.328 afastamentos por transtornos mentais registrados em 2024 revelam sequelas persistentes, com diagnósticos de ansiedade (+400% vs. 2014) e depressão (+91%). 65% dos trabalhadores relataram estresse ao retornar ao presencial, combinando medo de contágio, luto coletivo (700 mil mortes) e ruptura de rotinas familiares”, explicou Akio.
Desigualdade de gênero e faixa etária
Segundo dados do INSS, compilados pelo G1, a maioria dos trabalhadores afastados são mulheres (64%), com idade média de 41 anos. Akio ressalta que fatores como a dupla jornada — mulheres dedicam, em média, 10,4 horas mensais a mais do que os homens a tarefas domésticas —, a desigualdade salarial (elas ganham 22% menos em funções equivalentes) e o assédio no ambiente de trabalho (relatado por 44% das mulheres afastadas) agravam o cenário.
Outros fatores apontados pelo diretor são o fato de que 49,1% dos lares brasileiros são sustentados por mulheres e que 75% das empreendedoras relatam sofrer de estresse crônico
“Embora os dados oficiais não detalhem recortes raciais ou de renda, especialistas apontam que mulheres negras e de baixa renda enfrentam sobrecargas ainda maiores, combinando racismo, sexismo e precariedade laboral. A intersecção entre gênero e classe social revela uma crise que demanda políticas específicas para equidade e saúde ocupacional”, comentou Akio.
A nova NR1 e o impacto na saúde mental
No próximo dia 25 de maio, entrará em vigor a nova Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), com foco regulatório e olhar psicossocial. A nova versão será obrigatória para as empresas, que poderão ser multadas ou até interditadas caso não adotem práticas para prevenir o adoecimento mental.
Segundo Maurício Pepe, sócio trabalhista do Dias Carneiro Advogados, a principal ideia é que as empresas passem a atuar de forma consultiva, preventiva e, quando necessário, corretiva para melhorar a qualidade de vida dos profissionais.
“A atualização da NR-1 será capaz de reduzir substancialmente o número de afastamentos por transtornos psicológicos, pois, de agora em diante, os empregadores deverão implementar e comprovar a tomada de medidas hábeis a identificar e gerenciar riscos de natureza psicossocial em seus ambientes, bem como informar e treinar seus próprios empregados de maneira recorrente, de acordo com a natureza e peculiaridade de suas atividades”
- realizar avaliações de riscos que considerem fatores relacionados à saúde mental;
- desenvolver estratégias e políticas de apoio psicológico e gerenciamento de estresse;
- oferecer treinamentos para identificação de sinais de sofrimento emocional;
- criar canais de comunicação para que empregados possam expressar preocupações;
- monitorar continuamente o ambiente de trabalho, ajustando as medidas quando necessário.
Houve discussões sobre a adaptação das pequenas e médias empresas, que geralmente possuem menos recursos. Para Pepe, o apoio de advogados trabalhistas será essencial, e as medidas preventivas não demandarão investimentos substanciais de tempo ou recursos.
“Não obstante, vale destacar que todas as providências poderão ser utilizadas como meio de prova em ações judiciais, trazendo maior conforto e até mesmo segurança jurídica aos empregadores. Caberá ao profissional o ônus de comprovar que irregularidades ocorreram, ou seja, se as novas diretrizes forem atendidas, podemos esperar inclusive a redução de condenações sobre o assunto, fato esse muito importante para empresas de menor porte”
Direitos dos trabalhadores afastados
Pamella Iglesias, sócia administradora do Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados, explica que, independentemente da origem do transtorno, o trabalhador que se afastar por mais de 15 dias com CID relacionado à saúde mental será encaminhado ao INSS.
“O Trabalhador poderá receber auxílio acidente (se relacionado com a atividade laboral) ou auxílio-doença, ficando afastado de suas atividades até que receba alta do órgão previdenciário. Em alguns casos mais graves, poderá até ser concedida a aposentadoria por invalidez”
Ela destaca que, segundo o Ministério do Trabalho, doenças como o burnout são vistas como distúrbios emocionais com sintomas de exaustão extrema, estresse e desgaste físico provocados por situações de trabalho, principalmente o excesso de carga laboral. Empresas que tiverem funcionários afastados por burnout, comprovadamente relacionado ao ambiente de trabalho, poderão ser responsabilizadas na Justiça do Trabalho, com condenações por danos morais, materiais e garantia de estabilidade.
“As ações envolvendo questões de saúde mental vêm aumentando na justiça do trabalho desde 2020, quando houve o isolamento social. Se comprovada a concausa a Justiça tem condenado as empresas ao pagamento de indenização danos morais e materiais. Mas é importante que fique provado de forma contundente a concausa com o labor. O valor da condenação pode variar a depender da gravidade do caso, do tempo em que ficou exposto as situações que acarretaram a doença, entre outros fatores a serem identificados caso a caso”
Com a nova NR1, Pepe explica que o julgamento dos casos nos tribunais será impactado, pois, caso os empregadores implementem políticas, ações e treinamentos para proteger o ambiente de trabalho, isso pode influenciar o resultado de processos trabalhistas. Nesse caso, caberá aos empregados o ônus de comprovar as irregularidades.
“Agora os tribunais terão critérios mais claros para avaliar eventual nexo de causalidade entre o ambiente de trabalho e os supostos transtornos psicológicos alegados nas ações, deixando de levar em consideração apenas o resultado de perícias, as quais muitas vezes não retratam adequadamente a realidade enfrentada pelo trabalhador”