Classicamente, o contrato é um ato jurídico bilateral, dependente de, pelo menos, duas declarações de vontade, que visa criar, modificar ou extinguir direitos e deveres de conteúdo patrimonial. Neste conceito estão inclusos todos os “tipos de convenções ou estipulações que possam ser criadas pelo acordo de vontades e por outros fatores acessórios”[1]. Este conceito clássico atualmente representa apenas uma pequena parcela do mundo negocial. A maior parte dos contratos já são celebrados com pessoas jurídicas, empresas e com o Estado[2]. Há ocasiões, até mesmo, nas quais sequer se sabe quem é a outra parte, com a qual se está contratando.
Nesse sentido, na década de 90, o cientista da computação e criptógrafo Nick Szabo, analisou a relação entre um comprador e uma máquina de vendas automática (vending machine). Essencialmente, neste tipo de máquina, qualquer um com moedas, notas, ou cartões de crédito é capaz de depositar certa quantia e, em troca, receber um produto que escolheu usando um painel informatizado. Szabo definiu a relação da máquina de venda como um contrato com um portador (contract with bearer) e, nesses casos, muitas vezes não se sabe quem é este portador, ou seja, para qual empresa (ou empresas) vai o montante dispendido. Szabo, então, cunhou um novo conceito, o de contratos inteligentes (smart contracts), que seriam quaisquer mecanismos passíveis de serem imbuídos em programas computacionais (software) ou estruturas tecnológicas (hardware), de forma a tornar custosa a quebra contratual para um indivíduo mal-intencionado[3]. Esta definição, significativamente técnica, contudo, não satisfez as dúvidas dos juristas.
A partir dos anos 2010, a doutrina passou a admitir uma diferença entre Contratos legais inteligentes (smart legal contracts) e Código de contratos inteligentes (smart contract code). Os contratos legais inteligentes são contratos legais ou elementos de contratos legais, cujo cumprimento pode ser exigido pelas autoridades competentes, e que seriam representados e executados por meio de software. Como característica comum, os contratos legais inteligentes operam sob uma lógica condicional: “se A ocorrer, faça B”; ou “se C ocorrer, não faça D”. Os códigos de contratos inteligentes, por sua vez, são pedaços de código de programação (conhecidos como agentes de programas, ou software agents), criados com o objetivo de executar certas tarefas caso condições pré-definidas se verifiquem. Para que contratos legais inteligentes possam ser implementados, eles necessitam de um ou mais códigos de contratos inteligentes, mas nem todo código de contrato inteligente, isoladamente, é um contrato legal inteligente.
Vale dizer que, dependendo de quais problemas um contrato inteligente possa ter, estes poderiam ou não ser resolvidos com mais linhas de código, o que levou a doutrina dividir os tipos de cláusula de um contrato em operacionais e não operacionais. Em regra, apenas as cláusulas operacionais – que são aquelas que podem ser traduzidas em lógica condicional – podem ser substituídas por código de contratos inteligentes. Cláusulas não operacionais, que são aquelas que lidam com relações jurídicas mais amplas entre as partes – como é o caso da eleição de foro e legislação aplicável, por exemplo – dependem (pelo menos por enquanto) da “linguagem legal humana tradicional”[4].
No ramo do Direito Civil Comparado, já se tornou lugar-comum dizer que os contratos vivem uma crise existencial. Flávio Tartuce, no entanto, defende que “o contrato está sujeito a todas as variações possíveis pelas quais passa a sociedade, decorrentes da interpretação da lei no campo prático” e que esta crise que o Direito Comparado anuncia, em verdade, nada mais seria do que uma mudança de estrutura, ao invés de uma possibilidade de extinção dos contratos[5].
Isso porque, na prática, as vantagens de utilização de um contrato inteligente são as mais variadas. Estes instrumentos permitem a autoexecutoriedade, evitando que eventual parte prejudicada se veja obrigada a buscar tutela jurisdicional para ver adimplido o que fora contratado. Outro aspecto positivo está no afastamento do subjetivismo na interpretação das cláusulas contratuais, que é substituída pela linguagem computacional, significativamente menos fluida que a linguagem legal humana tradicional, o que permite mais segurança e mais previsibilidade na interpretação. Também existem, por outro lado, desvantagens, visto que um código incompleto ou mal escrito pode gerar, até mesmo, resultados opostos àqueles que se deseja.
Em tudo considerado, o setor privado já se mobiliza, ao redor do mundo, para absorver e utilizar, da melhor maneira possível, os smart contracts. Tanto é assim que diversas instituições relevantes já vêm publicando estudos sobre o tema, como é o caso da European Union Agency for Network and Information Security (ENISA)[6] e da International Swaps and Derivatives Association (ISDA)[7]. A Câmara de Comércio Digital dos Estados Unidos, inclusive, já formou um comitê específico para discutir os contratos inteligentes, chamado Smart Contracts Alliance[8].
Os Governos, no entanto, tendem a ser mais reticentes. É comum que a legislação dos estados nacionais demore a incorporar mecanismos legais efetivamente eficientes de regulação, em especial quando estas envolvem novas tecnologias. A velocidade de desenvolvimento do mercado de inovações, segurança computacional (cybersecurity) e da automação é significativamente maior que a capacidade dos legisladores ao redor do mundo de acompanhá-las. Além disso, a complexidade do assunto constitui um agravante que torna o desenvolvimento de políticas públicas ainda mais moroso e complexo. Fato é que estas tecnologias já vêm sendo utilizadas em uma miríade de campos de aplicação[9] e o Direito deverá, inevitavelmente, enfrentar o tema, mais cedo ou mais tarde.
[1] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em espécie. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 3, 2019, p. 26.
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil: Direito das Obrigações – Parte Especial – Contratos. 20 ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 6, Tomo I, 2018, p. 14.
[3] SZABO, Nick. Formalizing and Securing Relationships on Public Networks. First Monday. Publicação eletrônica, v. 2, n. 9, set. 1997, p. 1. Disponível em: https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/548/469. Acesso em: 14 jun. 2025.
[4] INTERNATIONAL SWAPS AND DERIVATIVES ASSOCIATION (ISDA) & LINKLATERS. Whitepaper: Smart Contracts and Distributed Ledger – A Legal Perspective. Publicação eletrônica, 2017, p. 10-12. Disponível em: https://www.isda.org/a/6EKDE/smart-contracts-and-distributed-ledger-a-legal-perspective.pdf. Acesso em: 14 jun. 2025.
[5] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em espécie. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 3, 2019, p. 31.
[6] EUROPEAN UNION AGENCY FOR NETWORK AND INFORMATION SECURITY (ENISA). Distributed Ledger Technology & Cybersecurity: Improving information security in the financial sector. Publicação eletrônica, dez. 2016. Disponível em: https://www.enisa.europa.eu/publications/blockchain-security. Acesso em: 14 jun. 2025.
[7] INTERNATIONAL SWAPS AND DERIVATIVES ASSOCIATION (ISDA) & LINKLATERS. Whitepaper: Smart Contracts and Distributed Ledger – A Legal Perspective. Publicação eletrônica, 2017. Disponível em: https://www.isda.org/a/6EKDE/smart-contracts-and-distributed-ledger-a-legal-perspective.pdf. Acesso em: 14 jun. 2025.
[8] SMART CONTRACTS ALLIANCE. SMART CONTRACTS: Is the Law Ready?. Chamber of Digital Commerce. Set. 2018. Disponível em: https://digitalchamber.s3.amazonaws.com/Smart-Contracts-Whitepaper-WEB.pdf. Acesso em: 14 jun. 2025.
[9] Exemplos são os campos da identificação digital, seguros, derivativos, hipotecas, registro de imóveis, logística, cadeias de suprimentos, testes clínicos e, até, do compartilhamento de dados de pesquisa acerca do câncer e outros temas relativos à saúde (CHAMBER OF DIGITAL COMMERCE. Smart Contracts: 12 Use Cases for Business & Beyond A Technology, Legal & Regulatory Introduction — Foreword by Nick Szabo. Publicação eletrônica, dez. 2016, p. 3. Disponível em: http://digitalchamber.org/assets/smart-contracts-12-use-cases-for-business-and-beyond.pdf. Acesso em: 14 jun. 2025).