Os profissionais ou curiosos na área de Recuperação de Empresas provavelmente já se depararam com a discussão sobre a “essencialidade de bens de capital” no contexto da Lei n° 11.101/2005. No entanto, você já ouviu falar da declaração de essencialidade de bens em favor de devedores que não estão em Recuperação Judicial?
Esse tema tem ganhado atenção no Judiciário, principalmente nas ações possessórias movidas contra Produtores Rurais ou outros agentes do agronegócio, que, devido ao inadimplemento das obrigações e a previsão de alienação fiduciária nos contratos de financiamento da atividade, têm seus maquinários e veículos apreendidos, conforme a legislação vigente.
Importante ressaltar que a discussão sobre a essencialidade de bens tem origem única e exclusiva na Lei n° 11.101/2005 (“Lei de Recuperação de Empresas e Falência – LRF”) e visa conferir ao devedor em crise sob o regime recuperacional, um período/fôlego conhecido como stay period, durante o qual bens de capital essenciais à atividade produtiva não podem ser retirados integralmente de sua posse, sob pena de inviabilizar a reestruturação financeira (art. 49, §3°, c/c art. 6°, §4° da LRF).
No contexto da Recuperação Judicial, essa matéria é crucial, pois, embora os credores fiduciários possam buscar a consolidação da garantia sem a interferência do Juízo Recuperacional (art. 49, §3° da LRF), caso haja a declaração de essencialidade de bens os efeitos desse reconhecimento impedirão que os credores realizem atos de consolidação do ativo, por todo o período que vigorar o stay period.
Entretanto, o Judiciário tem aplicado a definição de essencialidade de bens de capital, originalmente vinculada à Recuperação Judicial, em ações que envolvem devedores que não estão sob esse regime, especialmente em ações de Busca e Apreensão de maquinários agrícolas.
Nos Tribunais do Mato Grosso[1] e Goiás[2], a declaração de essencialidade de bens de capital em ações possessórias nas quais o devedor não está amparado por um processo de Recuperação Judicial pré-existente já foi debatida e, por aplicação análoga, reconheceu-se a essencialidade do bem objeto da alienação fiduciária, impedindo que o credor fiduciário consolidasse a propriedade, mesmo após comprovação do inadimplemento e não purgada a mora (art. 3°, §2°, Decreto-Lei n° 911/1969), determinando ainda, a manutenção da posse dos maquinários pelo devedor fiduciante (sem Recuperação Judicial).
Em um dos casos, a manutenção da posse do bem alienado fiduciariamente foi determinada até a ocorrência do trânsito em julgado da ação possessória – frise-se, sem qualquer pedido de Recuperação Judicial pré-existente.
Nos casos analisados, as decisões que reconheceram a essencialidade dos bens de capital utilizaram argumentos baseados em analogias desarrazoadas com o regime de Recuperação Judicial, aplicadas de forma inadequada a situações fora do contexto fático-processual. Essas decisões têm favorecido os devedores, especialmente no setor agropecuário, blindando indevidamente bens indicados como essenciais sem que haja um processo formal de Recuperação Judicial.
O uso indevido do conceito de essencialidade de bem de capital fora do contexto da Lei n° 11.101/2005 fere os princípios da segurança jurídica e da legalidade. Quando o Judiciário modifica condições contratuais estabelecidas entre partes, sem o consentimento mútuo, interfere no mercado financeiro, criando insegurança jurídica e dificultando a circulação de crédito. Isso pode gerar efeitos negativos em relação às operações financeiras, como aumento de juros e preços, devido à insegurança nas garantias.
A Lei nº 14.711/2023 (Lei do Marco Legal das Garantias) reforça a importância da segurança jurídica nas operações financeiras. A falta dessa segurança desestimula a concessão de empréstimos e o desenvolvimento de negócios com crédito parcelado, resultando em aumento de custos para todos os envolvidos.
Quando se invoca, sem fundamento jurídico, a essencialidade de bens em um contexto que não se aplica, o agente judicial prejudica o sistema financeiro. A alegação de essencialidade sem respaldo legal enfraquece os contratos garantidos por alienação fiduciária e desestabiliza o mercado de capitais.
Vale dizer que a função criativa da jurisprudência, enquanto fonte de direito, deve ser submissa à legislação. A atuação do Judiciário não pode se sobrepor à norma estabelecida pelo legislador, especialmente quando isso prejudica a estabilidade das relações econômicas, de confiança e jurídicas.
O tratamento dado ao tema tem gerado um desequilíbrio nas relações jurídicas e incentivado a má-fé. Quando um devedor utiliza a alegação de essencialidade para blindar bens ofertados como garantia, está se esquivando da responsabilidade pelo inadimplemento de sua dívida. A utilização do instituto da essencialidade fora do contexto da Recuperação Judicial resulta em um benefício indevido para o devedor.
Não há, nas legislações que regem a alienação fiduciária, no Código Civil, no Código de Processo Civil ou no Decreto-Lei n° 911/1969, qualquer norma que permita a declaração de essencialidade de bens quando o devedor não está em recuperação judicial.
A jurisprudência, em temas como a impenhorabilidade do bem de família, garantida pela Lei nº 8.009/1990, já estabelece que não é permitido ao Devedor utilizar a impenhorabilidade como forma de evitar a consolidação da propriedade em casos de inadimplemento da dívida. Esse entendimento, respaldado pelo Superior Tribunal de Justiça[3] é fundamentado na violação da boa-fé, pois o Devedor ofereceu espontaneamente o bem como garantia, não podendo se esquivar do cumprimento de sua obrigação.
De forma análoga, no contexto empresarial, quando o Devedor oferece um bem como garantia e, posteriormente, busca impedir a execução da dívida com base na alegação de essencialidade, também está violando a boa-fé, além de pretender a aplicação do direito sem qualquer norma positivada. Como dito, essa conduta é prejudicial ao sistema jurídico e econômico, pois altera a dinâmica dos contratos e prejudica os credores, delineando um cenário de insegurança jurídica.
Assim, em que pese a análise dos desarrazoados provimentos judiciais, deve-se ressaltar o acertado entendimento proferido pelo Magistrado da 1ª Vara Cível de Juara/MT, nos autos da ação de Busca e Apreensão n° 1002899-77.2024.8.11.0018, com destaques:
ID 186684549 (11/03/2025)
(…) muito embora a parte requerida alegue a essencialidade dos bens (…) deve-se atentar-se que o conceito de essencialidade de bens advém do princípio da função social e da preservação das empresas, ambos observados na Lei de Recuperação Judicial (Lei n. 11.101/05), (…) o que não é o caso dos autos, visto tratar-se de busca e apreensão em face de pessoa física que não se encontra em recuperação judicial.
(…)
Sendo assim, INDEFIRO o pedido (…).
Em linhas conclusivas, a aplicação indevida do conceito de essencialidade de bens de capital, frise-se, restrito exclusivamente a Lei de Recuperação de Empresas, em situações que não envolvem esse regime, representa uma distorção dos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Essa prática prejudica o equilíbrio das relações contratuais, cria insegurança no mercado financeiro e favorece injusta e inadequadamente os devedores. O Judiciário deve respeitar os limites da legislação vigente, a fim de garantir a estabilidade e a confiança no sistema jurídico e econômico
[1] Busca e Apreensão n° 1003547-44.2024.8.11.0087, em tramite perante a Vara Única da Comarca de Guarantã do Norte/MT
[2]Agravo de Instrumento n° 6127617-91.2024.8.09.0123, em tramite perante a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás.
[3] (STJ – AgInt no AREsp: 1909470 PR 2021/0170109-6, Data de Julgamento: 12/12/2022, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/12/2022)